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Foto do escritorHP Charles

Ela

Atualizado: 3 de abr. de 2024


Passava de uma hora da tarde quando ele adentrou ao pequeno restaurante. O mesmo em que nos quatro últimos meses havia almoçado todos os domingos. Sentado na mesma mesa, sentado na mesma cadeira, estrategicamente virado para o balcão vulgar do estabelecimento.


O garçom se apressou em oferecer-lhe um cardápio e perguntar se desejava algo para beber. Ele disse precisaria de alguns minutos para escolher. De fato, não estava ali pela comida e nem por atendimento fisiológico de seu corpo. Não era fome de comida. Estava ali por ela. Tão somente por ela.


Por trás do balcão ela se destacava entre as garrafas de bebida e licores baratos, refletida nos espelhos provectos, manchados de imagens melancólicas que compunham o ambiente. Não havia beleza helênica em suas feições, tampouco pintura a ressaltar os traços finos. Usava um singelo uniforme, composto apenas de um blusão, já roto e desfiado, com as iniciais do modesto comércio.


Mas para ele não existia imagem mais vistosa ou pura do que a dela. Hipnotizado com seus movimentos entregando garrafas a clientes sedentos após abri-las com um golpe ágil, observando seus passos rápidos de uma ponta do mármore à outra, metódica, mas graciosa, idolatrá-la era seu singular prazer. A enxergava longilínea, mais alta do que realmente era, não pela bancada de madeira de onde servia os fregueses, mas por conta de sua postura firme e seus olhos pedestais.


Apesar dos trinta e muitos anos, suas conquistas nunca se estabeleceram, nunca passaram de juvenis arremedos de adoração, de breves relações fadadas ao fracasso. Natimortas, sempre as viu sem futuro, sem paixão, sem furor. A única mulher que valorizou em sua vida fora sua mãe. Que lhe dizia que todas as outras fêmeas eram vagabundas. Que lhe ensinou que só quereriam seu dinheiro e sua virtude. Mas sua mãe morreu. Faz cinco anos e quinze dias. E agora faz quatro meses que há outra mulher em sua vida. Uma relevante. Ela.


O garçom torna a despertá-lo de seu transe e o chama com uma pitada de irritação: "e aí, já se decidiu?”


Ele aponta um número qualquer no menu plastificado, olhando através do funcionário transparente. Seu alimento estava bem ali adiante. Eterno, além do balcão.


Durante toda a semana ele imaginou aquele momento. Elocubrava como seria a vida de sua feiticeira. Se era casada – não poderia ser, não deveria ser! – se ela teria filhos, pais, projetos, sonhos, se o quereria também, por um favor do destino. O mesmo destino que o colocara ali. Sentado em uma cadeira de madeira, comendo um bife com ovo, ou qualquer outra porcaria que tivesse apontado aleatoriamente no papel. O que sabia de certo em sua vida era apenas o que sentia por ela. E nada mais.


Seu trabalho era burocrático. Assistente em um cartório, nunca construiu ambições. Nunca deveu, nunca fumou, nunca amou. Nunca se perdeu sem nunca ter se encontrado. Bom filho, estudante ignavo, sem propensão atlética e sem time de devoção, cresceu despercebido, inclusive de si mesmo. Seu hobby, desde a adolescência, fora colecionar velhas revistas de cowboys, onde xerifes destemidos lhe mostravam o que ele nunca poderia ser do alto de sua timidez congelante e de sua covardia medíocre. Portavam armas fálicas, que disparavam em todos que tentassem os subjugar, lhe provando, inapelavelmente, que em sua inércia nunca seria o herói. Mergulhado nesses gibis criou seu caráter, engessado e embalado por sua impotência.


Mesmo quando se encontrava a poucos metros dela, se sentia ameaçado por qualquer mão ou voz que pedia um drink. Faltava-lhe virilidade, elã, impulso e colhões para dirigir-lhe a palavra. Prisioneiro em sua conveniente teia de hiperfilosofia, a mais vagabunda das desculpas, o medo da rejeição suprimia totalmente a possibilidade do sucesso, lhe deixando coxo, claudicante, paralítico. O receio do prazer, a culpa por gostar de outra que não fosse sua mãe, tudo ardia em seu peito, causando instintiva reprovação e imediata taquicardia.


Mais uma vez levanta os olhos em direção ao balcão. Ele vislumbra seus cabelos negros, e bêbado, tenta adivinhar qual seria seu perfume. A fantasia nua, alva, só dele. Magistral naquela farda suja de cerveja, manchada de molho e enfado.


Só come metade do prato o empurrando em direção à ponta oposta da mesa. O tempo passou tão rápido. Ele não quer ir embora. Não ainda. Sonha com um olhar direto, com uma manifestação metafísica que a faça notar o sujeito que pediu bife com ovo. Nada acontece. E por que haveria de acontecer?


Repentinamente o improvável se apresenta. O raquítico garçom lhe pede que pague a conta no caixa, devido ao movimento. Ele gela. O caixa está no balcão. E no balcão é onde ela fica. Em seu trono.


Ele levanta cambaleante, a comida é devolvida à sua boca. Gástrica, acida, cruel. Caminha até borda do mármore e mudo espera para pagar. Ela vem em sua direção, confere a nota e diz:

- “São R$22,00”. E sorri genuína.


Ele entrega tremulamente uma nota de R$50. Ela então conta o troco e, ao passar as cédulas, apenas por um breve segundo, suas mãos se encostam.Inocentes,impolutas, inconsequentes. Completamente inconsequentes.


Acometido de um leve frisson, ouve um derradeiro “bom domingo”, que lhe sugere que tudo acabara ali. E que precisaria de mais um almoço em um outro domingo, em um outro mês, quando já seria um outro homem. Aquele das revistas. Viril, destemido, príncipe. O príncipe do filé a cavalo, mas ainda assim, um príncipe. Que a tiraria do balcão, que a encheria de beijos e promessas de amor eterno.


Ele põe os pés na calçada, vagueando em direção ao ponto de ônibus. Se sente fraco. Se condena. Questiona sua masculinidade atrofiada, culpa a mãe enterrada e, por fim, se aceita em sua inépcia. Pobre infeliz. Se visualiza velho, amargo e só, na pequena casa que herdou. O ônibus vira a esquina e um impulso furtivo lhe comanda que se atire na frente da viação. Naquela velocidade seria o mesmo que um tiro na boca. Mas então ele lembra dela. Lembra do momento sagrado em que sua pele tocou na dela. Lembra que haverá outros domingos. E que ela estará lá. Inextinguível. Perfeita.


O coletivo segue seu caminho e ele cola seu rosto à janela, se pondo a olhar os outdoors e os anônimos transeuntes nas ruas. Em cada anúncio ele a enxerga no balcão e, em cada mulher, o seu desejo de não ser mais ele.

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