Sou filho de pais que escutavam música clássica e mpb. Me recordo claramente de meu pai mexendo em seus LPs de Chico Buarque, Gil e afins. Em minha casa eu recebi zero influência do Rock, e tudo o que descobri foi sozinho, dando minhas cabeçadas, escutando rádios e ouvindo dicas de amigos no colégio.
O que ouvia em casa me parecia muito chato. E para mim ainda o é. Assim que passei a ganhar alguns trocados de mesada, comecei a comprar vinyls de minha primeira grande influência. O Queen. E quando você começa certo, meu camarada, é foda. Ficava fascinado com as harmonizações vocais, com a criatividade das composições, com a beleza das letras. Mas sobretudo com a guitarra mágica de Brian May com seus amplificadores Vox e seu famoso treble booster. À época eu não sabia nada e levei quase 30 anos para entender como aquela sonoridade era obtida. Não havia internet, entendam.
Em minha adolescência, maravilhado e influenciado com o "Rock Brasil", que nos deu Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude, Paralamas, Hojerizah, Ira, entre tantos outros, aporrinhei meu pai para que me comprasse uma guitarra. Eu já me atrevia no violão com cordas de nylon que ele possuia, fruto de sua fracassada tentativa em aprender o instrumento.
Em pouco tempo eu montaria uma banda e me apresentaria em alguns dos saraus mais legais do Rio de Janeiro, como o de meu colégio, o São Bento e o do Santo Inácio. Me recordo até de um malfadado show do PT na praia da Ilha do Governador, no qual tocamos e que, no meio do show, todo o equipamento que montaram, falhou. Sim, há décadas já era assim, que surpresa. Apesar disso foi uma época mágica. Ia a Shows do Barão no Morro da Urca, The Cure no Maracanãzinho, Echo and the Bunnymen, no Canecão.
Ocorre que, com o funil dos estudos, vestibular, faculdade e logo depois, trabalho, a guitarra foi abandonada. Mas jamais o rock and roll. Me recordo claramente das inúmeras idas à Niterói, a caminho da faculdade de direito da UFF, ouvindo Spy vs Spy, Hoodoo Gurus, Big Country e Australian Crawl. Sim, eu simplesmente adoro rock australiano e modestamente me considero quase um especialista nessa seara.
Um pouco mais tarde, já coberto pelas responsabilidades da vida e do direito, passei a consumir rock clássico e indie rock como um viciado em crack. Meu cd "Love", do The Cult, chegava a suar tal o número de repetições na disqueteira do carro. Sim, quem se lembra da disqueteira? Um apetrecho medieval que era imprescindível no carro de alguns poucos afortunados. Basicamente a bichinha suportava 10 cd's que eram trocados pelo rádio do carro. Jovens, filhos do mp3 e do streaming, não conseguem entender o esforço. Ficou muito fácil.
Enquanto isso, a guitarra ficava na memória, esquecida em algum cantinho de minha mente, rejeitada como uma namorada trocada por um Carnaval qualquer da juventude. Ela me deu muito mais do que dei a ela.
Me recordo de momentos melancólicos, tão comuns na vida de adolescente, onde me sentia perdido e só, e onde o violão e a guitarra foram os melhores amigos que eu podia ter. Enebriado pelas paixões juvenis, ansioso com notas e vida acadêmica, a música me ajudou a ultrapassar os dias difíceis. Na verdade, ela provavelmente me definiu, moldou meu caráter e gostos, e o faz até hoje.
Quando ouço o que se produz hoje, com raras exceções, e tendo o cuidado em me despir de saudosismos, percebo que a grana destruiu a música. A grana costuma destruir tudo que é puro, é bem verdade, costuma destruir a criatividade e o caráter das coisas. Hoje, quando trafégo pelos clássicos dos anos 70 e pela absurda variedade de bandas espetaculares dos anos 80, não consigo deixar de ter um pouco de pena dos jovens, com seus Biebers e Swifts, entronados pelo muro baixo. É aquilo, quem viu Leandro, sabe o que foi Rodinei.
Aos meus 30 e muitos bateu aquela coceira nos dedos, e me vi com a possibilidade de retornar enfim ao instrumento. Nada sabia de equipamentos, muita coisa havia mudado no hiato consignado pelo abandono da guitarra.
Quando retornei, meu guitar hero não era mais Brian May, mas The Edge, Johnny Marr e Billy Duff. Por incrível que pareça, eu sempre preferi guitarristas que trabalhavam mais no sentido de "encher" as músicas aos grande solistas.
Cheio de confiança, me dirigi à BarraMusic, loja da qual acabei por me tornar íntimo. Tão íntimo que virei advogado do estabelecimento e muito amigo do dono. Comprei um Vox Ac-30. Claro, era o amp do The Edge e do Brian May. Mas o burrinho não sabia ainda que tal amplificador precisaria de espaço para ser usado propriamente, vez que é um monstro de potência. Em um apartamento comum na Barra, ele era como uma besta enjaulada. Animado, apostei nos clássicos e adquiri uma Fender Stratocaster e trouxe uma Les Paul dos EUA.
Nada me dava mais prazer do que passar horas dentro da Barramusic, falando sobre uma enorme paixão. Uma paixão de seis cordas. Estava absolutamente feliz com o que estava acontecendo, com aquele resgate tão legal.
Mas tudo era muito confuso. Não sabia para onde ir musicalmente, vez que não tinha como montar uma banda e talvez nem quisesse. Foi quando descobri um carinha chamado Andy Othling que fazia uns vídeos com uma estrutura musical muito interessante se baseando em efeitos, com os quais criava uma atmosfera sonora diferente e interessante. E fazia tudo sozinho, estilo exército de um homem só. Na hora pensei...I can do that.
E assim foi. Em pouco tempo criaria o The Spiral Overlay Project e, na última década, produzi uma boa quantidade de vídeos para o Youtube. Infelizmente o canal foi absurda e covardemente deletado. Nesse tempo aprendi quase tudo o que se pode saber sobre efeitos, pedalboards, amplificadores e guitarras. Foi uma época pródiga em criatividade.
Com a morte de minha mãe, algo se partiu em mim e decidi, no mesmo dia, vender tudo o que possuia relativo a equipamento musical. Foi uma escolha abrupta e tola, motivada pelo estado emocional deplorável em que fiquei.
Mais uma vez eu traí a guitarra, e trair a guitarra é trair o Rock and Roll, não se enganem.
Aos poucos, faço as pazes com a maior perda de minha vida, a morte de minha mãe, algo que me catapultou a um abismo pessoal indizível, com a consequéncia de uma espiral depressiva terrível. Durante meses sofri calado, sorumbático, sem verniz e sem o instrumento que ainda clamava por mim. E então vou voltando paulatinamente a tocar. Tímido e desconfiado. Não tenho mais calos nos dedos, apenas no coração. Mas prometi que não serei mais injusto com a guitarra, afinal ela sempre esteve ali, disponível e presente ao longo de minha vida. Pronta para traduzir o que sentia e me fazer companhia com um copo de whisky como fez tantas vezes.
E assim é o rock, uma força imparável que te arremessa contra a parede, que te faz questionar o mundo, a realidade, e suas convicções, que te vira do avesso e te faz gritar alto o refrão batido de um AC/DC qualquer, pulando sozinho na cozinha, fazendo o tradicional sinal do rock e tocando uma guitarra iamaginária. Que coisa maravilhosa!
Se em sua vida você nunca ouviu de perto um amplificador valvulado no talo, você não viveu o que tinha para viver, pois é a coisa mais próxima que existe do prazer sexual. De um orgasmo bom e revigorante. Assim como no pulsar da cama, o som entra em suas veias e te faz estremecer, os movimentos dos falantes ditam o ritmo, te deixando enebriado, como o gozo oriundo dos movimentos pélvicos.
Na verdade, a atração magnética que a guitarra produz, possui um condão quase erótico. Muitas mulheres são atraídas pela figura do guitarrista e isso não é sem sentido, na medida em que ele precisa ter uma relação íntima com seu instrumento. É fácil criar uma associação. A analogia é cristalina. Imaginem bem. Ele a dedilha, a coloca presa junto a si, explora seu corpo com suas mãos, a faz "gemer". Há uma espécie de relação sexual no ato. Há prazer.
A música é a única arte capaz de te proporcionar uma reação física e emocional imediata, absolutamente sensitiva e por vezes inconsciente. Todas as outras artes impendem alguma reflexão, uma contextualização. A música entra em seus ouvidos e marca a sua vida de forma indelével e irremediável, te transforma inapelavelmente. Tocar um instrumento qualquer, criar música como for, é uma experiência inigualável.
Nesses anos todos de minha vida eu tive algumas relações muito importantes, mas poucas chegaram perto do que tive e tenho com a música e com a guitarra. Se você não tem isso, corra. A vida é curta. Deixe o Deus Rock te possuir e seja feliz.
"We're not gonna take it
No, we ain't gonna take it
We're not gonna take it anymore"
Rock and Roll all the way! 🤟🏻
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