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Foto do escritorHP Charles

Livros, booktube e a estética da virtude e da pureza.

Atualizado: 24 de abr. de 2024

2023 foi o ano em que realmente voltei a ler dignamente. Com intensidade e regularidade. Ler é um hábito como qualquer outro, e se há investimento de tempo e direção, pode ser extremamente prazeroso, oferecer crescimento pessoal, e até ser lucrativo. Esse hiato em minha vida literária se constituiu há muito tempo com a necessidade de me dedicar a livros acadêmicos de direito, coisa que sempre odiei. Vocês sabem o que acontece quando se faz algo que se repudia por muito tempo? Sim, ele se torna o caminho mais rápido para a terapia e para ojeriza.


Sempre li rápido e com alguma facilidade e isso tem tudo a ver com uma coisa chamada concentração. É algo que adquiri na infância, provavelmente por consequências da vida escolar no São Bento e pela pressão de meus pais no que concerne à leitura. Talvez até me servisse como fuga. A leitura frequentemente é usada como fuga, saibam. É como uma viagem para outros universos. Há a apropriação de histórias que não vivemos, de viagens que nunca fizemos, de beijos que jamais demos e que não poderíamos ter. A leitura bem feita gera indubitavelmente uma desconexão da realidade, uma ruptura no tempo e espaço, um teleporte para outra dimensão.


Sou filho de professores de português e literatura. Imaginem como a banda tocava em minha casa. Poderia me ser negado um sorvete, mas jamais uma revistinha. Poderia não ganhar o tênis, mas nunca deixaria de ganhar o livro. Meus pais entendiam que apenas aquilo me garantiria uma saída na vida. E ela viria necessariamente através da cultura e da erudição. Hoje vejo a vida de forma totalmente diferente, mas aquilo fazia sentido à época. Não era virtude, era caminho.


A partir de 2010 ou 2011, quando o Youtube ainda era mato e infinitamente mais legal, me inscrevi em alguns canais gringos que falavam sobre livro e uns outros poucos nacionais, que os copiavam. Alguns se consolidaram, outros não, pelos mais diversos motivos. Boa parte deles se estabilizou através da regularidade e persistência, e isso sim me parece a regra para a longevidade até hoje, e não apenas o amor aos livros ou à qualidade do trabalho. Há ainda uma aura de virtude que a leitura empresta e que me parece fundamental como atrativo na segmentação. Uma que adere ao nicho de alguma forma. Vocês sabem exatamente do que estou falando, não? Não?! Explico.


A tal das fotos padrão com café, o quarto com luzes aconchegantes, os filtros escurecidos, o intimismo, a mensagem ofertada com a desorganização premeditada e minuciosamente planejada para criar aquela estética da garota desajeitada e inteligente, do cara introspectivo e sensível. A "nerdeza" sexy de um lado, a "masculidade frágil e amiga" de outro. Meias coloridas, franjinhas, estantes lotadas, canecas preferidas, pets. Eu vou contar um segredo para vocês, ok? 80% disso é pura propaganda. O leitor espartano e regular não está no meio dessa barafunda e não poderia ligar menos para tudo isso. Ele está no transporte público, nos consultórios, nos parques, sentado sozinho.


Outro dia peguei o Metrô. Cheio, barulhento, sem lugar pra sentar. No meio disso, um guerreiro impassível lia como se nada o pudesse atrapalhar. Ele segurava na barra de apoio central com uma das mãos e virava as páginas de "O Velho e o Mar" (puta livro) com a outra, em um movimento quase acrobático. Você sentia só de olhar o quão absorto estava. O vagão sacudia, pessoas falavam, e ele lá, largando um foda-se, de mãos dadas com Hemingway. AQUELE CARA ERA UM LEITOR genuíno. Poderia chamar de "raiz"? Não havia sono, cansaço ou barulho que o impedisse em sua missão. Ele não parecia o tipo que postaria nada no Instagram como eu mesmo já fiz inúmeras vezes. Talvez nem fosse o dono do livro. Quem quer ler, lê, olha só. Quem não quer pode usar qualquer desculpa, todas servem.


O Youtube e o Instagram estão repletos disso. De propaganda. De belas fotos de livros, de estantes construídas para abrigar likes e não calhamaços, de unboxings engajadores (jamais entenderei a tara). Eu sou um leitor das antigas, do tempo em que não havia redes sociais. Talvez por isso, espere que o livro cause percepções absolutamente individuais e que reflitam a mim mesmo naquele momento. Em dez anos eu e "o rio" seremos diferentes, e portanto, também o será o livro para mim. Por isso nunca me inscrevi em qualquer clube ou qualquer outra coisa similar. Prefiro fazer a minha própria pesquisa e obter minha própria anamnese, tomar café sem anunciar e socializar com o Sebastião, o porteiro, um sábio (sério). Não precisa pagar por isso. Mas nada tenho contra se essa é a sua praia. Descansem, detratores.


Me recordo do esforço que fiz para ler "O Nome da Rosa" apropriadamente. A edição antiga não oferecia as facilidades que a nova possui no que concerne ao latim. E então aquilo foi um projeto que foi recomendado por meu pai. E marcou a minha vida. Esse ano, ler A Montanha Mágica foi uma experiência similar. E tomar a estrada sozinho me parece infinitamente mais apropriado. Você parece estabelecer uma relação com o autor de forma mais íntima e pertinente, afinal ele escreveu para VOCÊ.


Não me entendam mal, entendo o papel da crítica especializada, o desejo em ouvir opiniões de quem se confia. Apenas isso não tem apelo "para mim". Por vezes receio que haja uma contaminação de minhas percepções e isso destrua minha ideia sobre o livro. Outro problema que noto com frequência no booktube é o foco no caráter emotivo da leitura e não na obra em si. Muitas "resenhas" se resumem em contar como a pessoa que leu "se sentiu" lendo. Como aquilo a afetou emocionalmente. Esse é um ponto que deveria levar não mais do que um minuto. As impressões de um livro não precisam se transformar em terapia com os seguidores ou conter afetações emocionais. Não sei se isso é forma de maquiar o conteúdo do vídeo. Provavelmente.


Atualmente ler ficou mais fácil. Com os e-readers atuais o muro tá baixinho mesmo. Qualquer Kindle desses da vida te permitiria ler de noite e sob fogo cruzado em uma guerra menor. Livros de apoio se o bagulho ficar sério também são fáceis de achar e, quando bem escritos, se tornam um prazer a mais. Como disse, não sei até que ponto me importo quanto à opinião de terceiros sobre um ou outro livro, filme ou música. Indicações, sim. Mas também gosto do garimpo sozinho. Há mérito em descobrir aquela bandinha marota nas profundezas de um serviço de streaming qualquer. E ela fica sendo só sua. Quase.


Sempre fui assim. Talvez essas impressões me sejam tão relevantes como o quanto me importo com a opinião de alguém sobre o jogador que chegou em meu time de coração esse ano. Deixa a bola rolar que eu faço a minha avaliação. Mas novamente, é pessoal, sem deméritos para quem gosta do oposto.


Vejam, é claro que a leitura possui uma enorme virtude pois te afasta da ignorância e aumenta seus horizontes, mas ler faz isso, não fingir que lê. "Esse mês li 30" livros. Ok...eu vou acreditar nisso, "Umberto Eco". A possibilidade de enganar e sair ileso da enganação é deveras atraente para o pessoal da canequinha florida não aproveitar. A Nespresso agradece. E é impressionante como caras e bocas geram engajamento, não? É que muita gente quer mesmo é saber da vida do outro e não do livro. Muita gente curte a estética envolvida e não a literatura. Para mim, fora as exceções, quem lê muito em pouco tempo lê mal, e tal ilação talvez demande texto próprio. Mas depois é só assistir 10 vídeos dos outros e produzir o seu. Fácil, não? E aí? Qual é a visão original? Ela foi infectada por outros? Não importa? Ok.


O fato é que essa imagem compartimentalizada atrai. Não apenas a quem produz, mas a quem consome. Existe um suposto manto de pureza e inteligência que atende a um consumidor especifico, e vou mais além...há sim um apelo sexual que é bem tênue, bem escondido, mas que está lá, por baixo do cachecol e do cabelo providencialmente despenteado. A venda é de um combo que pode ser até comprado inconscientemente mas que vai no pacote. É a paudurescência, o tesão intelectual da imagem recatada, do comedido e do introspectivo ao invés da loucura que está aí fora, não? Entendo. É negócio. Não há dancinhas ridículas, não há vocabulário vulgar, não há balada. É apenas o "aroma" do sexo enfiado no meio do quartinho, no café como o vício permitido, os post its, as lombadas quebradas. Entendo. Mas ó...é marketing, ok?


"Book haul"? Legal. Você já leu aqueles 500 livros que enfeitam sua estante? "Não, eu li uns 10, mas fiz vídeos de 30, conta?". Claro que conta, ninguém liga mesmo para o que é verdade ou não. E toma de caras e bocas. Sim, existem exceções, tem uns canais legais e um pessoal sério que não se deixa afetar pelo hype. Tem gente de idade avançada que começou tarde e bate um papo divertido, genuíno, descompromissado. O dinheiro é bom mas estraga quase tudo. Isso fica muito claro na música e no cinema, também. As pessoas não percebem e quando se dão conta já estão acorrentadas, entendem? Em seu modo de vida, em seu narcisismo, em pequenos pecados.


Sim, quem gosta de livros adora ver as capas, as edições, saber o que há de novo no mercado, ver a estante do outro, como ela é arrumada, o colorido nas prateleiras. E toma de foto com caneca de café. O problema é que no final do mês temos 5 unboxings, 2 book haul, 2 vídeos sobre o que chegou na caixa postal, 1 sobre a estante nova e, se der tempo, uma resenha. A maioria, bem meia boca. E isso já faz tempo, viu?


Videozinho "fofo"? Sim, obrigado. Rola um apego à ideia da santidade e do "fora da curva" que tanto atrai a galera que curte um alfarrábio. Aquela imagem de que "não sou escravo das massas, não sou a menina contemporânea, não me rendi à creatina". Aquele visual de tarde chuvosa, um livro e umas torradinhas, tem alto apelo no meio do booktube. Mas o que sempre me atraiu, porque é muito mais genuíno, é a imagem do cara lendo no ponto de ônibus. Draconiano. Absoluto. Hirto. Ele não tem a canequinha mas com sorte rola até uma pipoca comprada na carrocinha ao lado. Meia porção doce, meia porção salgada.


Meu grande exemplo de leitor sempre será meu pai. Ele lia muitas vezes o mesmo livro, até gastá-lo. Me dizia que os livros bons eram assim. Melhoravam a cada releitura. Seus "parceiros" se tornavam rotos, muitos deles eram oriundos de sebos, de desejos e buscas específicas, minuciosas. Não havia Amazon, ele os achou todos gastando sola de sapato. Sua estante era arrumada apenas pelo critério do "nome do autor", talvez até tivesse outro que eu não soubesse. Não me recordo de haver ausência em sua cabeceira. SEMPRE havia um livro. Ele os emprestava sem dor, dizia que precisavam circular, e que se voltassem, voltariam. Devolver livro tem a ver com caráter, não? Assim como não emprestá-los talvez tenha. Vai saber...


Certa vez meu pai me contou que uma antiga coleção de Doyle, que acompanha a família há tantos anos, chegou até ele por conta de um livreiro que lhe devia dinheiro. O sujeito havia ficado muito sem jeito por não conseguir pagar e meu pai prontamente se ofereceu para quitar a dívida com aqueles livros usados que aqueceram minhas noites durante a adolescência. Olha que história legal.


É bom saber que os livros geram paixões além de modismos e de coleções infrutíferas, artificiais, à revelia do acúmulo insano e juvenil. Até porque não há dias suficientes em nossa existência para lê-los todos. Em 2024 pretendo ser mais o leitor do Metrô e muito menos o leitor do Starbucks. Muito menos o da foto minuciosamente preparada, dos clubinhos, dos filtros, do hype, dos enfadonhos unboxings.


O booktube, o "cinetube", o "musitube" poderia voltar ao tempo do Youtube antigo, onde tudo parecia mais genuíno e até feliz. Havia uma mágica enorme no improviso antes do full Hd e do 4k. Antes das palavras que hoje não podem mais ser ditas, antes dos "ring lights" e da profissionalização da influência. Lembram da barrinha de curtir? Pois é, antes mesmo dela. Éramos todos inocentes, não?


Talvez seja eu e mais alguns gatos pingados com quem converso sobre o assunto e que comunguem dessa mesma sensação, mas não te parece que tudo está ficando menos "encantador"? Tudo não está aparentando ser mais artificial, mais forçado, mais "compra e venda"? Mais robótico e menos alma? "Ah, Beto, mas aí não é apenas o YouTube, é o planeta", diria o Sebastião, oráculo da porra toda. E como sempre ele teria razão.


Claro, todos precisam pagar contas e a internet e o digital oferecem possibilidades infinitas. Ouro em bits. Mas a verdade é que "ter que pagar a hipoteca" sempre serviu como desculpa para as piores vilezas, tragédias e mentiras ao longo dos tempos. E o booktube não é diferente. Nunca foi.





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