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Amor em tempos do “eu”

Atualizado: 10 de jan. de 2024

Poucos disputariam que a filosofia que impera atualmente é o individualismo. Com isso, a premissa que passou a nortear o amor e as relações modernas é o atendimento ao próprio ego. Então, o que se tornou comezinho a ser ouvido em qualquer discussão a respeito de relacionamento é algo do tipo: "o mais importante para mim é amar a mim mesmo". Mas isso é amor? Ou isso é narcisismo?


Não há dúvida que a autoestima é importante em diversos níveis e situações, mas essa ânsia e devoção pelo "eu", pelo "autoconhecimento", pela "minha importância acima de tudo", está tornando a sociedade e as relações melhores? Os números são indiscutíveis no sentido de que não.


Atualmente existem cenários onde, fora dos momentos iniciais de êxtase e paixão, se considerem racionalmente relações perenes ou até duradouras sem as imaginar como exceções? Por favor...


A dinâmica do amor mudou consideravelmente com as redes sociais e a ilusão causada por ela no que tange ao número de opções amorosas viáveis. A quantidade de estímulos e facilidades de contato a que a pessoa é submetida aumentou de tal forma que todos parecem absolutamente acessíveis. Basta uma DM. Basta um like. Basta um post. Pessoas que jamais conhecemos nos dizem diariamente o quão especiais somos, o quão bonitos parecemos, e o quanto merecemos "ser felizes". É óbvio que isso é uma faca de dois gumes, pois amanhã mesmo isso virá de outras novas pessoas quaisquer. O termômetro passou a ser o like, e a "atenção" é o vício do momento. Maior do que o cigarro, maior do que o álcool, maior do que a cocaína. Você duvida? Então experimente desligar seu telefone por alguns dias.


De um lado os celulares viraram máquinas de fantasias e de possibilidades distorcidas onde todos são viáveis. Solteiros ou casados, disponíveis ou indisponíveis. Muito se tornou um jogo onde a suposta felicidade pessoal é o único objetivo. Mas como conciliar isso com a realidade objetiva da vida com seus dissabores e tragédias? É absolutamente provável que suas relações profissionais e pessoais passem por crises e instabilidades. Como fica a questão do "eu" em uma situação onde existe mais de um? Claro, alguém sempre irá perder (e não somar) vez que o ego e não a relação é o propósito final.


A busca da "felicidade" plena, diária e incessante, foi difundida como algo possível, defensável e pior, obrigatório. Como se essa busca pela felicidade pessoal se justificasse por qualquer atitude, mesmo que a ética fosse prejudicada e o caráter vilipendiado. "O que importa são os meus desejos, eu, eu, eu". Percebem por que está dando errado? Tais desejos jamais poderão ser atendidos face à realidade da vida.


A glamourização do amor próprio está gerando relações cada vez mais líquidas, mas rasas, mais substituíveis, na medida em que é preciso dois para se mover o sofá. Imaginemos casos simples e frequentes como o de uma súbita doença grave ou que impenda cuidados do parceiro. Vamos considerar um casal onde a mulher seja acometida de esclerose múltipla, por exemplo. Qual seria a sua reação a essa tragédia? Seria pensar, "esposa não é família"? E então devolver a esposa aos pais, irmãos, seja o que for, para que ela seja cuidada? Pela filosofia atual, o que se incentiva é o "tchau e benção". E se isso e pareceu ok, imagine que VOCÊ é quem desenvolveu a moléstia. Em que ponto isso não é trocar a televisão por que ela deu defeito? Se dá trabalho ou causa inconveniente, basta substituir. Mas pessoas não são objetos. Ou já chegamos a esse ponto? A psiquiatria tem um nome para quem pensa assim.


Sim, podemos sempre apelar ao "viemos sós e iremos sós", mas também cumpre pensar na natureza da relação que você possui. Provavelmente há uma enorme dose de entendimento e exemplo na visão e estrutura familiar que foi passada por seus pais. Eu já limpei vômito e literalmente a bunda de ex-namorada que passou mal. Hoje, pelo que se vê, isso parece algo absolutamente altruísta e quase impensável, mas sinceramente, não pensei duas vezes. A pessoa passava mal e precisava de cuidados. E isso era tudo o que eu precisava saber. Não pensei em nojo e não a amei menos porque me deparei com um fato fisiológico.


Vejam, a estrutura do amor e das relações longevas e maritais foi alterada. E ela foi alterada não mais pelos casos onde houve necessariamente uma violência, ou coisas como alcoolismo, vício em drogas, infidelidades constantes. As relações mudaram porque não é mais preciso se assumir responsabilidades, e frequentemente não há mais CONSEQUÊNCIA. Virar a página passou a ser o recomendado e por isso foram criados mecanismos de facilitação. Reparem como os filmes e as séries tem ido nessa direção nos últimos, pelo menos, 15 anos.


Vamos usar o exemplo do casamento moderno. Alguns estudiosos do assunto já entendem que deveria ser criado um novo nome para o que antes se conheceu como "casamento". Hoje a cerimônia pode ocorrer em uma semana e o enlace se desfazer na outra. Basta que um dos dois envolvidos acorde querendo que isso ocorra. Não há mais discussão ou punição para quem deu azo ou teve culpa em um caso onde houve infidelidade, por exemplo. Não há basicamente nenhuma diferença para uma relação comum. Aos poucos o casamento perde o sentido, principalmente para o homem, face à direção das leis modernas.


Se uma mulher faz uma denúncia de agressão, mesmo que falsa (números absurdamente altos), o parceiro é ejetado de casa sem nada e sumariamente. E tudo se encerra ali. Não é sem motivo que os casamentos e as relações estáveis se encontram em uma baixa histórica. Nos EUA nunca se viu números tão assustadores. O quanto o atendimento ao eu, à imaturidade e à propaganda, tem em relação com isso? Percebam, houve incentivo para que a mulher passasse a pensar e agir assim. Os homens passam a se defender e cada vez mais acreditam que mulheres não são confiáveis, fugindo de compromissos, recesosos de perderem parte daquilo que conquistaram. Isso pode ser bom como? Em algum momento será preciso rever algumas coisas. A diminuição drástica de filhos, de projetos comuns, de famílias. Talvez vocês não saibam, mas grandes empresas e grandes players do mercado, investem enormes somas em ração para gato e para vinho em caixas. Pegaram? Eles já perceberam.


Imagine, hoje é possível se terminar uma relação de 20 anos, de 2 anos ou 2 meses, e se recorrer a um aplicativo cuja real função é saltar o luto e te colocar em uma transa em 24 horas. Percebem como ficou mais fácil? Eu posso simplesmente enviar uma DM e entrar na vida da uma nova pessoa por quem tenho desejo, tesão, ou interesse, de forma imediata. Interesse que pode até ser financeiro, pensem nisso. A internet permite se pular um monte de etapas e por isso há tantos casos de golpe e tantas relações que terminam em tragédia.


Mas o irônico é que voltamos às questões cruciais do início do texto. O "eu" e a felicidade. Os números, as estatísticas, nos mostram que esse novo modelo de se relacionar, de se apaixonar, de transar, está atendendo às exigências cada vez maiores de um "eu" bombado, anabolizado? E a resposta é NÃO.


Nunca houve tanta infelicidade. Os consultórios de psiquiatras e psicólogos estão lotados. Os atendimentos online não param, antidepressivos, ansiolíticos, são prescritos como nunca na história, e desde muito cedo. Bulimia, anorexia, obesidade mórbida, doenças relativas ao "parecer", se tornaram endêmicas. Os suicídios também batem recordes, as relacões interpessoais se esfacelam. As pessoas estão irremediavelmente mais sós. Muitas vezes estão mais sós estando dentro de relações. E aí? Será então que o individualismo não é realmente isso tudo o que disseram? Será então que o Tinder não é apenas mais uma forma de compulsão moderna que inventaram para ganhar dinheiro com o desespero e com a infelicidade alheia, projetando uma solução que não existe?


Sim, é verdade que todos possuímos um certo grau de narcisismo e também é correto que é preciso cuidar da autoestima. Mas é preciso haver limite, a menos que o que se pretenda é viver em uma ilha ou usar os outros. Ou seja, o outro me serve enquanto atender às minhas necessidades, obedecer a meus desejos, servir para meus interesses. Não é à toa o aumento de casos e a notoriedade que está sendo dada aos narcisistas patológicos. Aqueles seres sem empatia e que povoam as redes sociais em busca de vítimas e de grana, fingindo ser o que não são. Eles se multiplicam ao milhares, é claro. Há comida, há suprimento, há muita oferta.


Mas o fato é que essa redefinição nos atributos do amor não está tornando a sociedade melhor. A idade chegará para todos. Na velhice todos seremos feios, teremos nossos corpos massacrados pelo tempo, a gravidade sempre vencerá, em que pese o Botox, a "harmonização" facial (sempre rio com essa tolice), as mágicas para parar os anos. A morte ainda é inevitável e a solidão sempre será um grande temor. Mas me digam como esses novos valores e direções estariam ajudando? Só existe o hoje?


Meu pai tinha 17 quando conheceu minha mãe aos 15. Fizeram planos de vida que pareciam impossíveis face à questão financeira. Mas se casaram, criaram os filhos, foram até o final juntos. Sim, eu vi momentos difíceis, assisti a crises pessoais e na relação, percebi tensão e algum desafeto momentâneo. Mas jamais ouvi falar em desistência. Acredito que se casaram por amor, mas acima de tudo fizeram votos. O amor é um sentimento. Ele pode mudar. Mas o caráter é imutável. Se tem ou não. Claro que havia algo a mais ali. Algo que levou minha mãe a segurar a mão de meu pai até seu suspiro final, já tomado pelo câncer. Me desculpe o pessoal da "autoestima", mas foi dividir a vida acima das paixões e dos altos e baixos de suas existências, que os tornou únicos e sua história inesquecível para tantos que conviveram com eles.


Sim, todos queremos amar e ansiamos desesperadamente pela felicidade. Mas como ser feliz à custa do resto do mundo. Seríamos mais felizes assim do quem vive da caridade? De quem acredita que precisa "ter" menos? De quem julga que a felicidade está justamente em dar a mão no momento mais difícil, quando o fácil era tão atraente? Ninguém troca alguém por algo "melhor", mas sim por algo mais "fácil". Talvez só possamos responder a isso quando estivermos em nossos últimos dias, contando nossos erros e enfrentando nossas culpas.


Meu pai morreu com minha mãe a seu lado e minha mãe faleceu algum tempo depois, dormindo, serena. Os dois se foram tendo cumprido suas missões com seus filhos, com a sociedade, mas acima de tudo um com o outro. Se isso não é sinônimo de felicidade, meus amigos, eu te garanto que acúmulo de coisas e rosto quadrado, não é.


Os tempos eram outros, dirão. Agora "é tudo online". As conexões, as desconexões, o amor, o desamor. As paixões, os ódios. O início e o fim. Tudo parece determinado por cliques em mouse. Fazemos de tudo, inclusive trair a nós mesmos em busca do Santo Graal contemporâneo, que é a "felicidade pessoal". Não há preço suficiente para ela, é o que dizem. E ela PRECISA SER constante, intensa, mundana e potente. Mesmo que seja uma miragem. Mesmo que na realidade dure alguns dias, alguns meses, quiçá. Qualquer coisa é melhor do que não atender às demandas das redes sociais onde todos fingem o tempo todo. "Se não há felicidade, finja! O que o outro vai pensar?!" Como lidar com uma sociedade onde a atenção é a moeda, a felicidade é o câmbio, e o preço é a alma? Essa é a pergunta que parece não calar.




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