Meu pai nasceu com uma missão clara. Ser pai do máximo de filhos que pudesse. E descobriu que só poderia fazer isso sendo professor. Mas não um comum. Ele decidiu que seria o melhor professor possível. Se a vida permitisse ele acharia o caminho. Teve origem humilde e nunca se importou com esse destino. Decidiu que faria diferença e fez.
Suspeito que tudo tenha começado de fato, comigo. Certa vez me contara que seu maior desejo sempre foi ter um filho. E afimou que se recebesse esse presente, seria para o filho o pai que nunca teve. Prometeu que nunca bateria em seu rebento. Nem com cintos, nem com pedaços de pau, nem com ferramentas. Sim, quando apanhava confessou que lhe era dado o direito de escolher o objeto de sua punição. Sádicos fazem isso, mesmo com os filhos. Disse que devolveria ao mundo a violência que recebeu em suas costas, repleta de cicatrizes, na forma de amor. E que essa seria sua redenção. Que puta alma, não? Conheceram agora um pouquinho de meu pai?
Então, um dia ele ganhou esse presente. Minha mãe me disse que por eu ter chegado ao mundo de madrugada, meu pai teria descido por alguns minutos para a rua deserta da maternidade no Grajaú, bairro do Rio de Janeiro, e que então se sentou na guia da calçada e chorou sozinho, copiosamente. Agradecido e realizado. E que mais tarde teria confessado ter confirmado seu verdadeiro predicado. Ser pai.
E o foi de muitos. De muitos alunos a quem educou, a quem distribuiu bolsas de estudos, muitas delas pagas de seu próprio bolso. Muitos desses alunos jamais saberão quem pagou seus cursos. Vejam...meu pai acreditava na educação como forma de socialização definitiva e de se alcançar a cidadania indispensável ao crescimento do país que tanto amava. Falava de livros e de literatura como falava da mulher que amou a vida inteira. Com carinho e com tesão.
Meu pai genuinamente acreditava que poderia mudar o mundo com sua Parker 51 e as mãos sujas de giz, cujo pó invariavelmente parava em seus jeans. Acreditava na vida de professor, na sala de aula. Acreditava em seus alunos. Lutava por eles, se entristecia quando não desempenhavam, e quantas vezes o vi se penitenciar pela falta de talento ou esmero alheio, como se isso fosse culpa absoluta dele, como se tudo dependesse de sua entrega ou capacidade como professor. Que bobagem.
Desde pequeno, ainda levado pelas mãos, me habituei a sentir o cheiro do café fresco da sala dos professores e me recordo claramente do pote de biscoitos que me eram sempre oferecidos por seus colegas. Me lembro de ser mimado por alunas que certamente projetavam a inteligência e os olhos verdes de meu pai em mim, inconscientemente. Guri, eu adorava toda aquela atenção, orgulhoso de ser filho do "mestre", de poder pegar guloseimas na cantina acreditando que eram gratuitas.
Com frequência meu pai recebia grupos de alunos em casa, sempre feliz e solicito com a admiração e interesse dos pupilos que conquistou com seu conhecimento e caráter. Muitos se tornaram amigos para a vida inteira e jogaram flores em seu caixão. Meu pai foi um mestre não só por excelência, mas por não poder ser outra coisa. A vida não lhe permitiria se afastar do magistério, seu condão e virtude.
Meu pai foi ainda office boy, radiotelegrafista, cursou direito, letras e antropologia. Falava inglês, latim, um bom francês, algum alemão e um português impecável. Percebam, não era uma pessoa comum. Odiava vulgaridades ou que levantassem a voz. Tinha aversão a covardias e mesquinharias. Uma espécie de lorde inglês nascido na Tijuca. Teve dois filhos a quem amou e deu tudo o que podia e o que não podia. E teve uma mulher, esposa e mãe fundamental, por quem morreria em um piscar de olhos. Hoje estão enterrados juntos, descansando infinitos.
Meu pai foi um homem à moda antiga e só teve um inimigo à altura em toda a sua vida: o cigarro. Lutou primeiro contra a cardiopatia e a venceu, e lutou bravamente contra o câncer sendo derrotado após uma longa batalha, onde jamais se entregou. Morreu como homem, porque foi homem pra caralho.
Tive o privilégio de, em seus momentos finais, estar a seu lado, apertar sua mão, e fazer por ele o que fez por mim a vida inteira. Dizer que o amava e que não temesse o que viria a seguir. E mais importante do que tudo isso, fazê-lo saber que foi fundamental em minha vida e na de muitos outros. Eu tive pai.
Meu pai, em sua sabedoria, me criou para a vida e jamais para ele próprio, pois sabia que quanto mais eu fosse de mim mesmo, de Humberto, mais seria dele, de Luiz. E assim foi. Me ensinando aos poucos, se tranformando de pai em amigo, porque herói sempre foi.
Hoje certamente senta à mesa com seus amigos de escrita e bebe a cerveja que o câncer lhe privou. O Imagino sentado ao lado de Fernando Pessoa, de José Régio, de Graciliano e Guimarães, e de tantos outros escritores e poetas que o acompanharam a vida inteira em sua cabeceira.
Sim, meu pai mudou a vida de muitos porque ousou acreditar que o faria apenas com um quadro negro. Formou advogados, médicos, professores como ele, forjou homens e foi admirado por mulheres que viram nele um exemplo de ser humano.
Voa pai, poeira das estrelas, homem, mestre, ser humano. Sempre amado. Jamais esquecido.
Um dia nos encontraremos novamente e falaremos do Flamengo, de Zico, e de como minha irmã finalmente se uniu a mim como você sempre desejou. Imagino agora um sorriso farto em seu rosto, meu pai. Dê um beijo em minha mãe a seu lado, sempre viva em mim.
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