É muito comum a vítima, ao ser descartada pelo narcisista, se perguntar porque não viu tantas bandeiras vermelhas. Por que se permitiu permanecer? Por que se permitiu ser abusada? Por que adoeceu? E ainda…por que após tudo isso ainda carrega culpa?
É importante ressaltar alguns pontos. Em primeiro lugar provavelmente você nem sabia o que era narcisismo e como tal abuso ocorre. Ou seja, você não possuia as ferramentas para identificar o problema, você apenas o sentiu ao longo do tempo.
Em segundo lugar a natureza do próprio abuso narcisista o torna absolutamente distinto, e fica ainda mais difícil reconhecê-lo se você lidou com um narcisista oculto. O narcisista oculto, ao contrário do grandioso, muito fácil de se verificar, se apresenta de forma vulnerável, com baixa autoestima, muitas vezes apresentando um padrão de submissão e esperando que você o salve, que você o resgate. E nesse contexto ele abusará. Comendo pelas beiradas. Ele poderá fazer isso durante anos desde que você o ofereça suprimento.
Dessa forma, dependendo de suas necessidades e características emocionais e psicológicas, seus desejos e aspirações afetivas, o narcisista te espelhará, oferecendo a você uma fantasia onde dividirá idealizações. E você aceitará, porque ele/a já leu o que você precisa. Ele então será inicialmente tudo aquilo que você desejou. Te colocará em um falso pedestal e você se sentirá incrível. Realizará seus desejos sexuais, dirá o quão inteligente você é, o quão divertido você, o quão sua vida é legal. Mas ele não quer realmente você. Ele quer o que você possui. Seu caráter, seu afeto real, suas referências, sua cultura e claro, seus bens. O narcisista te inveja. Inveja sua empatia e sua capacidade de amar. Ele quer “ser”, já que não é.
Então, ao longo da relação, ele se adaptará para te oferecer aquilo com o que você sonhou. Mudará as roupas, o estilo, usará suas palavras, sua criatividade. Mas na cabeça dele…tudo sempre foi dele mesmo. E você não percebeu. O abuso narcisista funciona da mesma forma da história do sapo na panela de água fervente. Quando o sapo percebe, já era. E isso é muito difícil de explicar para quem não passou por esse tipo de abuso.
O narcisista, via de regra, demonstrará uma vida perfeita, uma enorme simpatia com estranhos, com alguns amigos. Ele vive por validação e precisa manter sua imagem. É claro, alguns percebem. Alguns conseguem ouvir o outro lado, fazem contas, estranham certas mudanças e a velocidade dessas mudanças e atitudes. O narcisista é um camaleão, assim como o psicopata. Ele se adapta. E a vítima dificilmente percebe. Ela intui, mas raramente escuta sua própria intuição.
Após certo tempo a vítima passa a defender o narcisista. A “comprar seus barulhos”, a anuir ao notório posicionamento de vítima que adotam, vez que narcisistas são sempre heróis ou vítimas, jamais vilões. O narcisista “sequestra” o superego de suas vítimas, as fazendo acreditar que mesmo as mais abjetas atitudes sejam justificadas. Que furtos, apropriações alheias, sadismo, seja algo compreensível dependendo da situação. O narcisista não se importa e ensina a vítima a não se importar.
Ele mentirá sem sentir culpa, sem alterar as feições, porque naquele momento acreditará na própria mentira. Se não acreditar, cuida-se de um psicopata. Já expliquei a distinção e o porque em textos anteriores.
A vítima evidentemente possui empatia. Ela ama de verdade. Ela se preocupa com aquele monstro com máscara de herói ou de coitado. O narcisista frequentemente se apresentará para a vítima como alguém religioso, como alguém que ama animais, como um paladino da justiça e da boa fé. Claro, é tudo uma mentira.
Dentro de casa, em sua intimidade, ele abusará, roubará, tentará destruir e criar o caos em vidas alheias. Ele terá feito isso inúmeras vezes ao longo de sua vida e a vítima, evidente, não faz ideia disso. Talvez venha a saber algum dia. Normalmente a farsa tem uma data para se encerrar.
Assim, a vítima vai se tornando cega às inúmeras red flags. Em parte porque não as reconhece, em parte porque em sua dependência emocional escolheu não ver. Porque foi cômodo, por vergonha, por algum conforto que encontrou no abuso e na supressão claudicante de uma carência.
A vítima fica confusa porque não é vítima todos os dias. Quando a vítima desiste emocionalmente do agressor, ela também desiste de uma pessoa maravilhosa. Porque há períodos em que o narcisista é maravilhoso. E há períodos em que ele é um monstro. Se a vítima desiste do monstro, também desiste do cara maravilhoso. É um pacote. Muitas vítimas não conseguem dizer: "Sim, é um monstro às vezes, mas ele também é o homem mais maravilhoso que já conheci. Estou disposta a pagar o preço de estar com um monstro que aparece a cada três semanas”.
No abuso narcisista há uma relação de dependência mútua e é frequente quando a vítima sai do abuso, se perguntar se ela era a narcisista. Mas é sempre a vítima que procura terapia, é sempre ela que deseja sair da posição de vítima, é sempre ela quer seguir em frente, que atua lealmente, que precisa se curar para não levar suas feridas para outra relação. O narcisista não liga e no dia seguinte fará questão de mostrar a nova vítima em suas redes sociais e o quão está feliz com sua vida perfeita. Claro, o ciclo se repetirá. Apenas o novo suprimento não sabe. E não sabe porque não houve tempo. O narcisista não deixa a vítima pensar, ele a condiciona antes disso. Para isso serve o love bombing.
Na rua, nas redes sociais, com amigos, colegas de trabalho, na igreja, em sua vida da porta de casa para fora, o narcisista será gentil e afetuoso. E é por esse cara que a vítima se apaixonou. Mas ele não é real. Ele é o monstro que se mostrou no final quando descartou e tentou destruir a vítima como se ela nunca tivesse existido. Ao condenar sumariamente a vítima, o narcisista evita pensar no que fez. Ao adotar o maniqueísmo ele tenta escapar de seu olhar no espelho que o diria a verdade sobre si mesmo e sobre suas ações. Sobre o rastro de destruição que deixou sobre pessoas e famílias.
A vítima se sente culpada. Se sente culpada porque não entende. Não entende o abrupto descarte, não entende a traição, as mentiras, a destruição financeira, o tempo perdido. Se culpa dizendo a si mesma: “como não viu antes?”
Esse é justamente o condão nefasto do abuso narcisista, a exclusão da realidade, o roubo da identidade, o sorriso sádico no canto da boca, o sono roubado com discussões criadas na hora de dormir, na saúde vilipendiada que conduz a leitos de hospital. O narcisista tira tudo e nada entrega de verdade. Ele empresta. Como o Diabo, dá com uma mão e tira com a outra. O narcisista PRECISA destruir a vítima antes de partir. Essa é a natureza dele. Ele precisa que você permaneça sob seu controle, como um brinquedo sem pilhas que poderá ser reanimado a qualquer tempo.
Destarte, a vítima apesar dos danos, sempre estará melhor longe do narcisista. Ela pode até não saber disso em um primeiro momento. Mas quando se recuperar, quando mudar coisas em sua vida que já deveriam ter sido mudadas, entenderá enfim que nada foi real.
Entenderá que nunca houve amor, que nunca houve afeto, que foi um objeto mero doméstico ao longo dos anos, um motorista, uma transação bancária, um serviço de internet. No começo vai doer e depois vai haver alívio. E haverá alívio porque ela se dará conta que não viu as bandeiras vermelhas porque ao contrário do narcisista, ela é HUMANA.
A humanidade não se encontra em nossa biologia, mas na capacidade de possuir empatia, em sentir as dores do outro, em amar de verdade, em ter vivido na realidade, em perdoar, em se reconhecer e se ressignificar. Tudo isso é impossível para o narcisista. Ele sempre será escravo de sua maldição…que consiste em nunca exisitir fora dos outros.
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