Hirayama é um pacato senhor de meia idade que limpa banheiros públicos em Tóquio. Ele divide sua vida entre o trabalho, seu amor por fotografia, literatura, fitas cassetes de músicos dos anos 70 e 80 e plantas, que rega religiosamente.
Ele não se casou ou teve filhos. Se aplica em seu humilde trabalho com empenho inabalável. Trata a todos com absoluto respeito, fala apenas quando necessário, e costumeiramente sorri quando olha o céu e a natureza. Possui um temperamento calmo e paciente. Dentro de sua simplicidade parece saber algo a mais do que todos nós, espectadores. E sabe.
Hirayama de alguma forma decodificou o segredo de sua existência. Ele sabe quem é. Entendeu o seu propósito. E parece…feliz. Como isso é possível atualmente? Ser feliz?
Como esse senhor de mais de 60 anos, sem família próxima, pode sorrir, se orgulhar de limpar vasos sanitários e se bastar vivendo uma existência absolutamente trivial, espartana, quase solipsista? O filme de pouco mais de duas horas tem a exata missão de nos explicar. E consegue.
O protagonista acorda todos os dias no mesmo horário, escova os dentes, rega as plantas, se veste e vai para o trabalho. Limpa os banheiros como se sua vida dependesse disso, os deixando impecáveis, almoça olhando as árvores e tira algumas fotos que cuidadosamente revela e guarda em caixas, em seu fim de semana.
Ajuda quem pode em seu trajeto cotidiano, e então toma banho em um local pertinente e tradicional no Japão, volta para casa, troca de roupa e por vezes sai de bicicleta para jantar em seu lugar de preferência. Sempre o mesmo.
Retorna para seu apartamento, se deita e nunca deixa de ler dedicadamente algumas páginas antes de dormir. Ele sempre sonha. Win Wenders convida o espectador a desnudar seus sonhos e tentar compreender seus significados ocultos, misturados às imagens em preto e branco. A delicadeza e a sensibilidade do diretor estão presentes mais uma vez. A repetição é proposital. A rotina consagra e acalenta a existência de seu protagonista, emprestando sentido e refrigério à sua vida.
Em determinado momento do filme Hirayama recebe a visita de sua sobrinha, que não vê faz muito tempo. Sua relação com ela é distante, mas eivada de afeto e carinho. A menina parece entender rapidamente a escolha existencial do tio e seu proposital afastamento do mundo a que pertence sua família abastada. A distância do dinheiro e provavelmente de questões mal resolvidas com o pai. Seu tio escolheu a paz e ela parece padecer do mesmo desejo na medida em que não quer voltar para sua própria casa e ficar junto à mãe. O filme deixa o público traçar suas considerações acerca dos esqueletos que existiriam no armário daquela família. O importante para a narrativa não é o que ocorreu, mas a escolha tomada.
“Existem mundos diferentes, alguns se conectam e outros não”.
“Da próxima vez é da próxima vez, e agora é agora”
A simplicidade da filosofia de Hirayama ecoa em sua vida e funciona como um tapa na cara do espectador. Uma chamada para valores, ideais, empatia e o sentido real de se viver.
Wenders não precisa mostrar nada além do absolutamente necessário, assim como seu protagonista não precisa dizer nada além do necessário. A sua vida fala por ele. Em seu brilhante desempenho, Koji Yakusho impregna a película com uma presença arrebatadora e conjura sentimentos em quem assiste sua história. Sentimentos esquecidos, empoeirados pelo virtual, pelas malditas redes sociais, pela desconexão hodierna, pelas relações cada vez mais fluidas. E de certa maneira nos mata de inveja. "Aquele cara quebrou a Matrix. Como ele fez isso? Por que não podemos ser mais como ele?"
Mais como ele? Felizes? Simples? Sim. Poderíamos…
O maior mérito da narrativa escolhida pelo diretor, foi demonstrar um herói vulnerável em sua jornada. Ele guarda suas dores familiares, amores não resolvidos, há sofrimento ali. Mas há redenção. Há felicidade conquistada nas pequenas coisas. Há afeto, há amizade, há compreensão. Há sabedoria que separa e distingue desejo de necessidade.
Hiroyama entendeu que "ser" é o real caminho para a sua felicidade. Entendeu que os livros usados de $1 dólar contêm sabedoria suficiente para ele. Percebeu que sua simples rotina abriga todo o propósito possível para guarnecer seu espírito de paz e de tranquilidade.
Ele acorda, trabalha, come e dorme, mas o faz com absoluta certeza de que esse é o sentido da vida. Pelo menos para ele. Ele se encontrou e por isso é feliz. Falta de ambição? É justamente o contrário.
Ao final, o espectador é convidado para uma poética reflexão sobre a vida e a morte, em um contraste metafórico entre luzes e sombras. A vida segue. O sofrimento, as perdas, a importância dos pequenos prazeres embutida em coisas simples, a felicidade que sempre é transitória, são aspectos abordados em "Dias Perfeitos"
Wenders nos presenteia com uma pequena e poética obra-prima. Um filme que nos convida a pensar em nossas próprias vidas e no mundo em que hoje vivemos, assolado pela solidão, pela ansiedade e pelo consumismo. O diretor nos clama a revermos a filosofia moderna que consagrou o individualismo, o narcisismo e o instrumentalismo como direção, apontando uma possível razão para as coisas terem perdido o rumo.
Dias Felizes é um recado para a sociedade moderna, uma pequena luz capaz de acender novamente a fagulha da humanidade que hoje parece tão sufocada dentro de nós. A felicidade está na ética, no afeto, na beleza e simplicidade das pequenas coisas e dos pequenos atos.
Quando será que entenderemos isso? O que realmente nos falta? O que é ser feliz?
Talvez só possamos responder tais perguntas quando descobrirmos quem realmente somos. E foi isso que Hiroyama fez.
PS.: há uma relevante cena adicional após os créditos.
PS.2: 9 de 10 para a trilha sonora.
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