É madrugada. Pouso minha bagagem sob o batente da porta. Uma mala é de roupas e outra é de derrota. Olho para o quarto vazio e me sinto culpado. Não que alguém tenha assim me apontado. Não foi preciso.
Confiro meu passaporte, conto o dinheiro no bolso, faço as abluções pertinentes à viagem e sento uma última vez à cama onde tantas vezes me deitei, dentro da casa onde nasci, localizada no país que agora deixo.
Incontáveis as vezes que aventei sair de minha terra. Não por não amá-la, mesmo que assim alardeasse. Pindorama, lar do bom futebol, do carnaval insaciável e da malemolência inevitável. Esse é o produto vendido. Mas quem poderia me culpar? O mais radical dos nacionalistas me daria razão em algum momento.
Como encontrar arrimo e incentivo em uma nação que é vista como o oásis do jeitinho, do “leve vantagem em cima dos outros”. E a prática se fez verbo. E o verbo se fez ordem. Essa maldição se impregnou no cotidiano da população a ponto de todos acharem normal e comezinho, o que deveria ser vil e repugnante.
Não quero mais isso.
Não há herói algum, do Oiapoque ao Chuí, que vá condenar quem um dia encheu os pulmões para gritar, “eu me vou embora daqui”?! Será que alguém, em sã consciência, iria cobrar brasilidade de quem só quis o básico e nem o básico teve? De quem buscava apenas uma nação com serviços de saúde com atendimento digno, ao arrepio da verdade putrefata, esquecida nos corredores dos hospitais públicos? Ou que implorou por educação bastante para consignar um resquício de cidadania, vez que sem educação, não há cidadania, mas apenas a ilusão de que ela existe? Ou então de quem desejou um simples fiapo de segurança pública para sair de casa e ir ao trabalho sem temer ser assaltado e tomar um tiro na cara?
Qual seria o Hércules que julgaria quem não mais suporta - apesar de trabalhar mais horas por dia do que recomenda a melhor medicina - chegar ao final do mês contando os centavos para pagar apenas uma passagem? E saber ainda que o ticket infernal lhe dá direito não ao mínimo conforto, mas ao contrário, impõe o esmagamento compulsório, em um ônibus decrépito ou em um vagão claustrofóbico qualquer? Nem o mais bravo dos espartanos chamaria tal pessoa de covarde ou desistente.
Mas algo aconteceu no instante derradeiro. Por intuição abri o jornal do dia, o último que receberia antes do cancelamento, relíquia guardada para o avião. Subitamente algo muda em mim, após alguns parágrafos. Atônito, ligo o computador outrora embalado e vejo o que precisava ver. Está confirmado. O improvável aconteceu. O gol do campeonato aos 45 minutos do segundo tempo. E, ao que tudo indica, coincidentemente, foi um tiro na cara e alguns centavos que empurraram a bola para dentro. Parece que o leite transbordou. E foram os mesmos centavos encantados que tantos usam para andar nos rabecões coletivos, que fizeram o copo encher. E ele encheu...
Encheu porque tudo tem limite. Até o que parecia não ter. Encheu porque sobreviver já é difícil, mas sobreviver calado é insuportável. Encheu porque sobreviver calado é insuportável, mas sobreviver calado e apanhando é impossível.
E paga imposto e não reclama. E toma madeirada nos dedos e solas dos pés. E toma spray de pimenta para botar nos olhos e na salada, com o balsâmico vinagre proibido. E não filma, porque te dou um tiro na cara. E o tiro saiu. E o tiro foi filmado, entre tantos tiros não filmados, mas desferidos.
A diferença é que esse não acertou apenas a órbita de uma jovem repórter. Acertou o peito contido de milhões. Pois fiquem com meus vinte centavos. Eu não quero mais esmolas. Quero meu país! Não vão me dar? Eu tomo! Nós tomamos, vós tomais! Como Pedro, eu fico. Agora pétreo. Agora pedreira.
Pela primeira vez em décadas eu desfiz as malas que sempre estiveram prontas dentro de mim. Abri a janela e vi um orgulho voando baixo, um que julgava extinto. Alguém grita no meio da rua, “é tudo bobagem, fiquem em casa, não dará em nada, fogo de artifício”. Faço ouvidos moucos, duvido e arreganho os dentes. Já me disseram isso antes e eu acreditei. Eles me disseram isso. Eles!
Me disseram isso enquanto aprovavam leis na calada da noite, quando se mancomunavam sorrateiros, como os ratos que são. Me disseram isso com voz melíflua, ao pedirem seus votos digitais e fazerem promessas surreais, que nunca se cumpririam. Foram eles que me disseram que era bobagem.
Foram eles que, ardilosamente, empurraram goela abaixo, a religião anestesiante, a novela inebriante, que sussurraram que era impossível. “Gritem o gol, sambem o samba, pois é a parte que vos cabe deste latifúndio”, gargalhavam soberanos. Vamos Brasil, fazemos em 36 vezes a geladeira na “linha branca”. É ou não é um bom negócio? Miseráveis...
Nunca souberam quanto valem os 20 centavos. Mas irão aprender. E quem irá ensinar está com sangue nos olhos. Os mesmos olhos ardidos pelo spray fascista, perfurante, brucutu.
Pálpebras molhadas de sangue, férreas. Supercílio aberto pela bala de borracha, atirada pela arma de metal, disparada pela mão de carne e fel.
Eles não atiraram na repórter. Atiraram em mim, porra! Atiraram em qualquer um que não aguenta mais o sorriso cínico dos plenários, que rejeita a desigualdade que separa as almas, que alimenta a fome que nos soca a boca com os doces pendurados nos retrovisores. Qual é o limite?
Eu pressenti, juro. Estádios nababescos, índios despejados (desde 1500 o são), licitação do Maraca! “Aha, Uhu, o Maraca é nosso”! A Copa do Mundo é nossa! A venda dos ingressos malditos é nossa! Nossa, é o caralho! É deles, isso sim!
Gol do Neymar, gente! Gol do Neymar!
Desculpe, não ouvi. É que caiu uma bomba de “efeito moral” perto de mim.
Pois eu digo o que é bomba de efeito moral. Bomba de efeito moral é ver o teto do congresso repleto de gente, e quando digo gente, me refiro ao povo e não a vampiros travestidos de deputados, com suas barrigas de avental e unhas pintadas com esmalte incolor, palitando os dentes depois de aprovar mais alguma desnecessidade que só importa a eles.
Bomba de efeito moral foi navegar em páginas e páginas, oceânico, e ver que um gigante passou nas maiores avenidas de nossas maiores capitais. Binário e indestrutível, suas pegadas não puderam ser apagadas pela tinta dos jornais viciados ou revistas prostitutas, muito menos pelas películas cúmplices das asnáticas televisões, com seus Big Brothers anabólicos e noticiários caolhas, repletos de anúncios com migalhas para os famintos.
Pergunto de novo e ninguém me responde: qual é o limite?
Boto a cabeça para fora, periscópico. Perto de mim cai mais uma bomba de efeito moral. Não me incomodo, não freio, eu quero é mais. Quero gritar, segurar a bandeira, ela é verde e amarela, varonil, escudo de pano, em meu peito de aço.
Hoje tem passeata e só quero o que me devem. Nada mais. Passe livre, voz e dignidade. Não peço por mim, peço por todos e todos pedem por mim. O chão treme e lá vem o tal gigante. Irrefreável, com pé de anjo e coração de leão. Lhe chamam em uníssono. Bradam seu predicado como se fora espada e lhe entoam hinos e canções de batalha.
Vão me jogar pimenta, devolvo com tomates. Vão me atirar bombas, devolvo com flores. Vão me dar tapa na cara, já os levo há 30 anos. O que mais podem fazer que não tentaram antes? Qual foi o estratagema campeão que não foi derrotado por um movimento social irrefreável?
Pois que tentem. O dia amanheceu diferente, há algo de especial no ar. Sinto o aroma de café coado, ouço passos nas ruas. São meus irmãos, os brasileiros. Eles acordaram comigo do sono calado, hibernado, paralítico. Cara lavada, pão com manteiga e marcham. Atrás deles caminha o gigante. Passada firme, impávido, colosso onipotente. Todos gritam seu nome. E seu nome é Brasil.
Hpcharles.
Obs.: o texto acima foi escrito há cerca de 10 anos com o intuito de promover reflexões acerca das fatídicas manifestações por conta dos "20 centavos" impostos como aumento das passagens no transporte público. Uma série de embates ocorreu em diversos estados do país na oportunidade. O presente texto, assim como um vídeo narrado por dezenas de booktubers, em um trabalho conjunto, foi divulgado em diversos blogs e canais do Youtube.
Foi uma das poucas vezes em que a comunidade booktuber se uniu em função de um ideal comum.
Os tempos mudaram, o país passou por enormes transformações políticas, mas entendi que cumpria a consignação do texto nesse pequeno blog, vez que a plataforma que possuia a versão original (frapuucinnomochbranco) deletou o trabalho autoral sem a permissão do autor.
De qualquer forma, fica a lembrança de um movimento que tomou às ruas e a internet, gerando reflexão e luta por um ideal político e social em nosso país.
(Hpcharles)
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