O primeiro passo é você reconhecer e aceitar que estava em um. E isso não é simples ou cristalino. Pode levar anos. Pode ser que você não tivesse as ferramentas para perceber os problemas, não conhecesse as patologias. Mas após o término da relação você provavelmente se lembrará e atinará para coisas que passaram despercebidas, ou que você escolheu inconscientemente relevar.
O próprio padrão de início e término da relação é sintomático. Seu/sua ex parceiro terminou também de forma súbita a antiga relação? Ou seja terminou algo relevante de aparentemente de forma repentina para ficar com você? Interferiu em outra relação em andamento? Houve deslealdade, infidelidade? Havia transparência quanto ao passado dele? Caso positivo, entenda que provavelmente o que aconteceu com você já ocorreu antes em outra relação. Não foi a primeira vez em que ele fez isso. E provavelmente isso se repetirá outras vezes.
No término houve mentiras, apropriação das suas coisas, dificuldade em se estabelecer contato para resolução de conflitos? Houve desejo de vingança, provocações, frieza? Houve o início e o desenvolvimento muito rápido de uma nova relação mesmo que ela tenha vindo logo após uma história longa e relevante? Sem aparente luto ou pesar naturais de todo ser humano? Durante a relação você se sentiu isolado, desenvolveu sintomas físicos negativos, doenças crônicas, insônia e ansiedade? Teve sua vida profissional e financeira afetada ou destruída? Se sentia distante da pessoa que você sempre foi, sempre estava “pisando em ovos”? Sentia que nada do que fazia era suficiente? Se sentia só mesmo acompanhado?
Você muitas vezes teve seus sentimentos angústias e necessidades afetivas desprezadas e então você foi levado ao limite e a ter que reagir, parecendo que VOCÊ era a pessoa sem calma e descompensada, e não o abusador? Isso se chama “abuso reativo”. É muito comum. O abusador tenta te descontrolar para em seguida se vitimizar. É proposital. Quantas vezes você estava feliz e isso incomodou a seu parceiro? Ele te agradecia quando você fazia algo por ele? Te pedia desculpas quando errava? Tudo isso ficou esquecido, não?
Se isso ocorreu, é provável que você tenha se relacionado com alguém que possui um transtorno de personalidade. Mas isso não é o final da sua história. Não precisa ser. É absolutamente compreensível que você passe a ter uma enorme dificuldade em confiar em em si mesmo e novamente em alguém no campo afetivo sexual, afinal de contas você foi usado. E com isso você perdeu contato com quem você realmente era.
Seus valores, sua maneira de ver a vida, sua compreensão do mundo e do futuro foi gradualmente sequestrada pelo abusador ao longo dos anos. Você precisou “sumir” para que ele brilhasse. E tudo é muito tênue, muito sutil. Havia dias maravilhosos, momentos únicos, porque o abuso é sempre uma alternância de “quente e frio”. O condicionamento é intermitente.
Mas tente se recordar de algumas coisas. Os beijos e abraços eram quentes e aconchegantes? Eram frequentes? Eram buscados? O sexo era “íntimo” ou você sempre sentia algo mecânico, apenas fisiológico? Em algum momento você sentiu que estava perdendo aos poucos o interesse nas coisas de que mais gostava? Você se lembra como era quando entrou na relação e se recorda o estado em que saiu?
Era saudável e saiu doente? Estava bem profissionalmente e financeiramente e saiu muito pior? Você se sentiu dependente e depois abandonado emocionalmente ao final? E ainda se sentiu culpado mesmo com os FATOS acima tendo ocorrido? Pois é.
A culpa por ter se permitido se colocar em tal situação, a infantilização a que se submeteu, a maneira como foi tratado após o término, o descarte abrupto e cruel. Tudo isso é indicativo de que você se relacionou com um psicopata ou com um narcisista.
Sim, o recomeço e a superação levará tempo. Talvez anos. Mas ela é possível. É preciso paciência, desejo, terapia e ajuda. Não tenha receio em pedir ajuda. Existem pessoas boas, e você deve ter amigos. Pessoas normais têm amigos. Repare se o abusador tinha. Quantos? Como era a relação deles com os amigos? Distante, não? Meras conversas eventuais ao telefone? E você não reparou? Poucas ou nenhuma visita, não é mesmo?
E com a família? Você notava afeto? Beijos, abraços, boa relação com os pais? Veja…não se cuida de “pagar” coisas, e sim de AFETO. Em algum momento em sua relação abusiva houve real preocupação com a SUA situação? Os seus desejos? As suas aspirações? Elas sumiram, não?
Mas eis uma questão relevante: porque você se permitiu que tanto te fosse tirado? Essa é a pergunta mais importante? O que o narcisista te ofereceu que você tanto queria? Que você tanto precisava? É a partir daí que você comecará a se reconstruir e a ressignificar sua vida. De nada adianta reconhecer um narcisista sem entender porque você se sentiu atraído pela fantasia que ele te ofereceu. Sim, qual a SUA responsabilidade nesse ciclo?
Por que você entregou a responsabilidade da sua felicidade para outra pessoa? Uma pessoa, aliás, que JAMAIS será feliz face a própria natureza. Sim, porque é evidente que quem tenta destruir a vida de outro carrega em si uma dor muito maior. Uma dor que tenta desesperadamente esconder do mundo exterior e que só pode ser conhecida por quem conviveu intimamente com ela. Uma dor que não poderá ser sublimada com bens, com poder, com fama, com dinheiro, porque ela é inerente à própria personalidade distorcida de quem a possui.
Mas não você. Você pode mudar o curso de sua vida. Mudar de verdade. Entenda…você sabe como agiu, reconhece seus erros e acertos. Possui empatia, estabeleceu relações reais ao longo de sua vida. Mas não o abusador. Acredite. Ele carrega uma mochila pesada. Ele tem consciência do que fez, apenas se tornou bom em esconder isso em sua vida e em sua alma. Eventualmente tais memórias se tornarão vivas em sua mente, mesmo que por alguns pequenos momentos. O superego costuma ser impiedoso.
Há uma estrada a ser percorrida após o abuso. Esqueça o que os outros dizem. Esqueça as mentiras que foram propagadas sobre você a fim de esconder o mal que te foi causado. A verdade está nos fatos e ela é imutável.
Foque em sua vida, nas pessoas que te deram a mão, que foram leais, que realmente te amam. Se concentre em tornar a sua vida pródiga, em ajudar a quem precisa, a ser novamente você mesmo. Tudo está aí, dentro de você, mesmo que você não se lembre. Suas referências musicais, literárias, cinematográficas. O esporte que você abandonou, o seu time de coração, volte a sorrir. Volte a ser você porque até isso te foi roubado. Sua identidade.
Eu sei, acredite…é preciso tempo. E é preciso coragem. Mas não se permita ficar em posicão de vítima. Eles farão isso, não você. Você foi vitimizado, mas não é uma vítima eterna. A vida dá voltas e todos nós teremos o mesmo destino final. Então por que não viver a sequência de sua existência de forma pródiga, tentando fazer da sua vida e de quem você puder ajudar, algo melhor?
O planeta vive uma grande “pandemia” de problemas de saúde mental, e a sua batalha não é solitária. Divida com alguém suas dores. E também escute. A cura começa sendo ouvido.
Lembre. O passado precisa ficar no passado. Não se permita ser definido por ele. Compreenda o que viveu e siga em frente.
Não há nada como um dia após o outro com uma noite no meio. Viva um dia de cada vez. Se reencontre. Sua felicidade está dentro de você. Você não a encontrará em nada e nem em ninguém além de em si mesmo.
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