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Foto do escritorHP Charles

Você realmente sabe quem está a seu lado?

Atualizado: 23 de fev. de 2024


Se você está vivendo uma relação amorosa e divide o teto com alguém, provavelmente acordará todos os dias ao lado da mesma pessoa. Reparte seus dias, sua rotina, confessa seus anseios e desejos, estipula planos e projetos, que se realizarão ou não. Então, um dia, por algum motivo, você se pergunta como chegou ali. Mas por que você de repente fez essa pergunta?


Passa a divagar sobre as etapas que solidificaram a relação e a confiança, passa a relembrar as dificuldades ao longo dos anos, os esforços mútuos quando ter um lar não passava de um sonho distante. O dinheiro contado, a conquista do fogão e da geladeira. Tudo isso levou tempo e solidificou o afeto. Foi uma estrada de esforço mútuo e de abdicação que exigiu esmero e muito afeto. Sim, esse é o único processo saudável.


Mas e quando a história não aconteceu assim? E quando ela ocorreu no automático? E nem você entende bem a sucessão de eventos que te fez se unir a um estranho em um mês. E se você bizarramente tivesse agido como "não sendo você" por algum motivo inidentificável, seja por paixão, por carência ou por não ter lido corretamente os sinais vermelhos ao longo do caminho, e descobrisse, ou viesse a se deparar com indícios de que aquela mesma pessoa com quem você atualmente luta por uma parte maior do edredom, fosse apenas um disfarce? Uma máscara, um outro ser. E então você percebesse que, em sua ânsia de fazer dar certo, desprezou o passado do parceiro, jamais conheceu a natureza de suas antigas histórias afetivas (onde ele ou ela sempre foram vítimas ou heróis, mas jamais injustos, infâmes, desonestos ou cruéis), e não atinou para a essência das relações interfamiliares de quem puxou seu travesseiro. Por que tudo teve que ser tão rápido? Para que eu não percebesse? Para que eu não pudesse reagir? O que aconteceu? Você não é assim. Ou é?


E então uma luz vermelha acende. Será que eu realmente conheço aquela pessoa que vive comigo?


Eu o conheci na internet, como tantos se conhecem, presumi verdade em suas palavras tão doces. Flores, chocolates, promessas de sonhos que se realizariam, sexo contumaz e tão perfeito que mais parecia um...teatro. Sim, tudo parecia perfeito. Demais.


Ele me pediu em namoro logo de cara, disse que eu era a pessoa de sua vida, que fui um presente de Deus. E que daríamos um jeito em tudo, por que afinal, quem pode lutar contra o destino? "Jogue tudo para o alto, sua nova vida começa aqui".


Seus pais se assustam, seus amigos se assustam, você se assusta. Mas você não raciocina, é só emoção, é como se retornasse à infância, onde tudo era doce e simples. Ele manda, eu faço. Claro, ele me ama, e por isso sabe exatamente o que é melhor para mim. O conheci faz apenas duas semanas, mas parece um milênio. Um príncipe em um cavalo branco. Ele me envia mensagens sem parar, quer saber onde estou, tem muitos ciúmes, até demais, mas isso acontece porque ele me adora e não porque quer controlar cada passo que dou. Mas por ele faço tudo. Minto, traio e roubo. No Apocalipse também há cavalos e cavaleiros.


Continuo sem saber nada sobre seu passado, a não ser o que ele me disse, o que me permitiu saber. Um santo sem pecados cuja infância foi tão difícil, desprezado pelos pais, maltratado por todos, inclusive por suas ex, todas loucas. Certamente ele é uma vítima e eu preciso cuidar dele. Preciso salvá-lo. Dar a ele tudo o que ele não teve. Meu amor, meu corpo, meu tempo, meu dinheiro. Meu nome. Porque tenho um e ele não. Não como gostaria. Ele me inveja e adora meu dinheiro, meu trabalho, meu potencial e meu status. Ele quer a minha vida. Claro. Acha isso fundamental. Gosta tanto que interfere, me coordena, me diz como fazer. Ele coloca ideias em minha cabeça que não estavam lá, me manipula, me faz crer no que não creio, me torna cada vez mais dependente. Ele precisa que eu ganhe mais, que eu "invista mais na relação". Sempre mais.


Mas aquela luz vermelha ainda paira sobre minha cabeça, e não sei porque, escolho não ligar.


Aos poucos ele toma conta de mim. De todo meu ser. De minha personalidade, de meus sonhos, de meu ganha pão - do qual ele nunca participou nos anos difíceis - , dos bens que nunca ajudou a conquistar. Pareço inerte e sem forças a não ser para confiar e torcer. Há algo errado. Mas e daí? O que importa é que ele me "ama".


De uns tempos para cá ele tem se tornado estranho. Tudo diminuiu de intensidade. Pareço não mais ser suficiente. Em um mês já morávamos juntos e tudo parecia perfeito. Agora não mais. Ele tem se mostrado agressivo, desinteressado, possui hábitos estranhos, inclusive higiênicos. Possui um cheiro diferente, uma murrinha. Seu olhar por vezes é vazio. O sexo parece sem conexão, robótico. As discussões se tornaram frequentes e inexplicáveis. Com quem me uni em minha apressada decisão? O que eu sabia realmente? Por que decidi tão rápido? Pior...fui realmente eu quem decidiu? Ou tudo, absolutamente tudo, foi decidido por mim, sem que percebesse. Por fraqueza, por dependência, por medo.


Ele tornou seu celular seu altar, uma peça que lhe parece preciosa, indecifrável e indisputável. Jamais o solta. Me conquistou com ele. Me fez mentir aos outros através dele. Me tornou parecida com ele através de seu objeto sagrado. Um objeto de caça? O arco de onde lança as flechas. Por Deus, quem ELE realmente é? Os dias passam, sigo suas ordens e seus conselhos. Ele dominou minha personalidade e minha luz. Ele me machuca e não reajo. Tenho receio de o perder. Não o homem, mas o vício. Não o amor, mas o trauma que nos une. Ele olha para os lados, para outras. Não sou mais a princesa. Há outras princesas. Mais jovens. A excitação da nova conquista lhe é hipnotizante. Não há lealdade. E ele me ensinou isso. Que não há lealdade.


Me sinto isolada, alheia a amigos e família. Não tenho mais ninguém além dele. Ele sempre me disse que eles não eram importantes, que apenas ele era. Ele me afastou. Me levou para seu castelo, para sua torre. Noto que seu sono é inconstante, que conversa com outros ou com outras. Seriam novas "eu"? Seriam as próximas a receberem flores, doces e promessas de amor. A lhes dar seu dinheiro, suas posses, seu corpo, sua vida confortável? Eu fui apenas um peão em seu jogo de xadrex. Sacrificável.


Aquela mesma luz vermelha agora é um farol, e já estou totalmente encarcerada. Como soltar as correntes que me prendem a quem tão precocemente confiei e me uni? A ladeira desce com enorme velocidade, ainda mais após o casamento. Sei que existem outras. Sempre existiram. Por que escolhi não ver?


Eu não sabia. Eu não tinha as informações. Não havia assistido aos vídeos. Não tinha lido os livros. Não possuia as ferramentas. Houve um golpe. Não conhecia o transtorno. Ninguém me avisou. Mas agora tudo se encaixa. E pagarei o preço. O maior que alguém poderia pagar. Ele é um ser cuja única missão é deixar uma estrada de destruição, de separações, de desolação e dor. Ele não ama porque é incapaz de amar. Essa é a sua natureza. E sempre será assim.


No entanto começo a fazer planos. Planos de escape. Olho para a porta, penso em meus animais de estimação que provavelmente são maltratados fora de minhas vistas, porque isso faz parte do transtorno. Toda a literatura pertinente conduz a isso, mesmo que não acredite. Começo a ter esperança. Quero fugir. Procuro pessoas em quem realmente confio, que me alertaram acerca de minha premeditação. Elas dizem que me avisaram e que não as quis ouvir em meu êxtase juvenil, e então me acolhem. Eu choro calada, sozinha. A culpa me consome. O que fiz a outros? O que fiz a mim mesma?


Anseio por ser eu mesma novamente, por recobrar o que me foi tomado, a minha identidade, a minha alma. Fora da intimidade de meu lar ninguém percebe o inferno. Ele não deixa. Seu maior temor é que saibam. Que a máscara caia. Sem ela ele não conseguirá construir uma nova história de abuso. Ele não conseguirá apagar o passado como sempre faz. Mais uma das dezenas de tragédias que carrega em sua história nefasta.


Começo o processo de libertação. Ele não quer permitir. Me procura, finge, mente como sempre mentiu. Me oferece migalhas emocionais a fim de que me recorde do começo de tudo, onde me apaixonei. Onde ele não me deixava pensar, apenas sentir. Ele me stalkeia. Me inferniza. Há uma guerra. Já não sou o suprimento principal, mas o secundário. Ele é puro mal, coberto por um charme barato e sem erudição. Frases prontas...


Enfim um dia me liberto. Estou devastada. Quebrada. Mas começo a ser eu novamente. E começo a sorrir. As pessoas me dizem que há um novo brilho. E a vida então deixa de ser cinza.

Já não me encontro na masmorra onde era o objeto sexual e a fonte enviesada de suprimento emocional para um demônio.


Tudo enfim vai passando. Mas há algo que jamais me esquecerei. Seu cheiro. Eles tem um odor próprio, natural de sua espécie e que os separa de um humano. Uma murrinha, um cheiro sulfúrico, tão pertinente a uma criatura oriunda do inferno.


Nunca foi amor. Foi apenas vício. Foi apenas trauma. E isso dói. Dói pelo tempo perdido. Dói por ter me permitido ter sido tocada. Dói por ter machucado inocentes. Dói por ter deixado de ser eu.


Mas o tempo das rupturas acabou. E visto a minha armadura. A de São Jorge. Aquela que matou o dragão e sobrepujou o mal.


"Omnia vincit amor".


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